Dra. Carmen Tzanno foi entrevistada pela reportagem.
“Se não tivesse assistido ao seriado, demoraria mais tempo
para chegar ao diagnóstico certo da enfermidade”
Carmen Tzanno Branco Martins, nefrologista
A paciente entra no consultório relatando uma série de sintomas. Um deles, um tanto quanto atípico: urina de cor carmim – acompanhada de fadiga muscular, perda de consciência e dores abdominais. Ao se deparar com o quadro, a médica responsável pelo atendimento, a nefrologista Carmen Tzanno Branco Martins, de São Paulo, lembra-se de um episódio do seriado “House” a que havia assistido na mesma semana. Na série, o médico Gregory House – um gênio na arte do diagnóstico – é encarregado de decifrar os casos mais enigmáticos que surgem no hospital onde trabalha. No capítulo que Carmen assistira, uma mulher fora internada com sintomas semelhantes aos de sua paciente. O diagnóstico dado por House foi porfiria aguda intermitente, uma doença rara que tem como principal sintoma a alteração da cor da urina. Suspeitando que pudesse estar diante da mesma enfermidade que a equipe do doutor House, Carmen pede os exames para porfiria. Quando chegam os resultados, comprova: é mesmo a doença. “O outro médico que acompanhava essa paciente me deu os parabéns pelo diagnóstico e disse que ele não havia pensado nisso”, conta. “Se eu não tivesse assistido ao episódio do seriado, provavelmente demoraria muito mais tempo para chegar à enfermidade porque não é algo comum de vermos.”
CRÍTICA
Sentar-se na frente da tevê para assistir ao médico e seu time discutirem casos misteriosos da medicina tornou-se mania entre médicos e estudantes de medicina. Para grande parte deles, ver “House” é uma oportunidade para exercitar o raciocínio e conhecer doenças raras. “Acompanho os casos e fico tentando resolver também”, conta Carmen. Nas universidades de medicina, é difícil encontrar quem nunca tenha assistido a pelo menos um capítulo. “Na minha turma todo mundo vê”, conta Carolina Batista, 22 anos, estudante do sexto ano do curso de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “Quando os professores vão apresentar uma doença menos frequente geralmente eles falam que é a mesma do episódio de ‘House’”, diz a estudante. Ela e seu namorado, Heleno Paiva, 24 anos, têm ainda os livros que analisam a ciência médica exposta na série.
Em São Paulo, o estudante Caio Frasão, 23 anos, aluno do sexto ano de medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também já conheceu novas moléstias assistindo ao seriado. “Era um caso de nesidioblastose, um tumor no pâncreas sobre o qual nunca tinha ouvido falar”, lembra. Seus colegas de turma também são fãs do seriado.
Há algumas razões para a série mais vista da televisão por assinatura brasileira nos últimos três anos ter virado um sucesso entre os profissionais de saúde. A primeira é que os temas abordados têm o respaldo de consultores da área médica, que acompanham a produção de cada episódio. Isso quer dizer que “House” é ficção, porém baseada em informações reais e atualizadas sobre medicina. Além disso, o médico apresenta uma fantástica capacidade de observação do paciente e dos sinais que manifesta a respeito de sua doença, sem contar a astúcia para ligar os sintomas e chegar ao diagnóstico correto, por mais difícil que ele fosse inicialmente.
Por causa dessa característica em especial, “House” acabou virando um exemplo a ser seguido, uma espécie de professor de diagnóstico em uma era em que esta arte anda meio esquecida. O chamado “olho clínico” – a capacidade do médico de observar os sinais e conectá-los a doenças – ficou em segundo plano desde que outros recursos foram criados, como os exames de imagem. “Muita gente começou a ter mais admiração pelas máquinas do que pelos sintomas dos pacientes”, considera Paulo Olzon, professor de clínica médica da Unifesp. Olzon é nefrologista e infectologista – as mesmas especialidades do médico da ficção.
TÁTICA
E, para chegar ao diagnóstico, há ainda o inegável encanto exercido pelos raciocínios intrincados do personagem. Inspirado em outro famoso personagem, o detetive britânico Sherlock Holmes, House usa estratégias de pensamento próprias de investigadores policiais. Isso, na opinião dos profissionais de saúde, chama a atenção para o lado detetive que deve existir em todo médico – que precisa ser capaz de raciocinar em torno dos sintomas e levantar informações da vida do paciente que não estão evidentes. “O médico também é um investigador. Você tem as provas do crime, que são os sintomas e, reunindo-as, soluciona o enigma”, compara o infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor-assistente da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista, campus de Botucatu, interior de São Paulo. Nas aulas que ministra na universidade, Barbosa passa trechos do seriado a seus alunos. “Serve para mostrar a eles a importância de ter um raciocínio crítico diante do caso descrito pelo paciente”, fala.
No seriado, tudo é usado como indício pelo médico. Até o cheiro do doente. E, por mais que House tenha a sua disposição os mais modernos exames de imagem, eles só são realizados após sua equipe se reunir para traçar hipóteses (as prováveis doenças que a pessoa pode ter). “Esse é o procedimento correto”, avalia o médico Olzon, da Unifesp. “Fazer milhares de exames sem primeiro montar uma hipótese é a mesma coisa que, em um crime, achar que todo mundo é culpado.”
Os estudantes de medicina Túlio Mariante, 22 anos, Alexandre de Figueiredo Maciel e Vinícius Leduc, ambos com 23 anos, tiveram a chance de acompanhar de perto, durante uma aula, o desenvolvimento de um raciocínio à la House. O trio, que está no terceiro ano da Faculdade de Ciências Médicas, em Belo Horizonte, deparou-se com uma garotinha que foi internada com problemas cardiorrespiratórios. “O raio X mostrava uma mancha sobre o pulmão que parecia pneumonia”, lembra Leduc. “Mas, quando auscultávamos o tórax dela, estava normal”, lembra.
Quem resolveu a equação aparentemente sem solução foi a professora: a garota havia sofrido uma grande dilatação da artéria aorta. Essa deformidade, ao mesmo tempo que causava os sintomas narrados pela menina, atrapalhava a passagem da radiação durante o exame, afetando a imagem final – e simulando a mancha de uma pneumonia. O exemplo real confirmou ao grupo aquilo que eles veem sempre no seriado: o bom médico precisa desconfiar do óbvio. “Quando assisto à série tenho mais vontade de conhecer melhor as doenças e ser um médico tão bom quanto o doutor House”, sonha Mariante.
Na verdade, os discípulos de House só não querem adotar a personalidade do médico. Muitas vezes ele é antiético – se precisar, falsifica exames para garantir a realização de procedimentos, por exemplo. É arrogante e destrata não só os próprios colegas como também os pacientes. E, nisso, ninguém quer ser igual.
A matéria "Os discípulos de House" pode ser conferida na íntegra no site da Istoé Independente.